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O monstruosamente óbvio

Para quem ainda não sabe, o nome deste projeto fresquinho vem de um pássaro popular no Brasil, conhecido por imitar o canto de outros pássaros. Quando li sobre as particularidades da espécie foi essa característica que registrei primeiro e que me alcançou como um aviso: ainda que não seja uma cópia exata ou que parta de uma inspiração plenamente indireta, toda criação nasce filha da observação e da escuta.


Comecei, então, a enxergar na Curió esse processo de cópia maturada - é claro que tudo o que escreverei para vocês é influência e experimento. Tudo o que escreverei para vocês, no entanto, também é sonho.


Justamente por considerar essa ideia de absorção e acúmulo quando falamos sobre criação, lembrei de Amadou Hampâté Bâ. O escritor malinês nos ensina que “[...] tudo fala, tudo é palavra, tudo procura nos comunicar algum conhecimento”, ou seja, quando há abertura e a devida atenção, é possível aprender algo - muitas vezes algo inesperado.


E aqui não falo somente da nossa relação com a natureza viva (a centralidade da Curió), nesta primeira edição persigo qualquer coisa com a qual precisamos lidar, sejam contratempos que rasgam a rotina ou um lapso de consciência que nos leva a olhar alguém, mesmo que desempenhando uma tarefa comum, com calma.


Reparem também que nesta tentativa não falo de uma ligação extraordinária ou encantada, o que busco é afirmar beleza na simultaneidade do tempo e no modo curioso, muitas vezes brutal, como tudo acontece de forma incessante e conectada. Em meio a essa torrente, escrever é o que me mantém desperta. Escrever sobre o que sobrevoa e caminha ao meu redor.


Os meus sentidos, assim, aprendem com os pássaros e a direção para a qual seguem os bandos, aprendem com os sons da terra, o estalar das folhas e a noção de que algumas árvores levam 80 anos para encerrar seu crescimento, para dar frutos. Tudo isso revela comunhão, coexistência, diálogo. E ainda que seja tão simples, são poucas as vezes em que nos atentamos realmente.


Em um de seus romances, a escritora pernambucana Micheliny Verunschk relata a história de duas crianças indígenas que foram vendidas para os brancos e que tiveram suas vidas dilaceradas. Serviram de experimentação e vitrine, não sobreviveram.


O interessante é que durante a partida uma dessas crianças “[...] ouviu a voz do rio, contínua e tornada escura pela fricção com as pedras, com as raízes e com a pele corrediça dos peixes. Pôde sentir sua teimosia e agastamento, [...] esbravejava”. E mesmo quando muito distante de casa, a menina ouvia a voz da água. Isso porque todo rio vai de encontro a outro, eles se pertencem e são um único centro.


Como destaca Verunschk, o trabalho da natureza é constante e humilde, mas talvez o estranho vínculo entre todas as coisas só seja possível, só seja verdade, quando antes nos entregamos à largura do detalhe - ao naco de atenção que se concede ao nada. Ou até mesmo quando entendemos o que nos compõe e as necessidades que escolhemos e com elas forçamos familiaridade.


Encerro mais confusa do que quando comecei e ainda não decidi se isso é algo bom ou ruim. Hilda Hilst com certeza dirá mais:



 
 
 

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